Duas mulheres

Depois de passar o dia debaixo do sol escaldante de dezembro, foi com certo alívio que entramos na casa grande.

A claridade tinha dilatado as nossas pupilas, então comprimentei a dona do lugar através do vulto que consegui enxergar. Ela nos explicou que a fazenda funcionava sem energia elétrica, a água do banho era quente por conta do sistema de aquecimento solar, o acesso aos quartos podia ser feito ao longo do corredor, mas também havia a opção dos reformados na parte externa, onde nos tempos áureos daquela rota, funcionara a senzala. 

Preferi o último no final do corredor. O quarto era grande e a janela abria para um grande pasto verde. Pensei ter feito uma boa escolha. Meu marido trouxe a bagagem e colocou em cima da cama. 

Não sei o exato momento que me dei conta da pintura ao lado da porta, duas mulheres, uma ao lado da outra, os traços de uma arte à mão livre, criada no couro de um quadrúpede qualquer. Uma branca outra negra, uma alta outra baixa, o senhorio e a escrava, olhos perfurados escorrendo pelo vestido de chita.

Me inspirou um certo mau estar, cogitei a troca do quarto desencorajada pelo escárnio do companheiro. Medo? Sim... a figura era feia, violenta, não poderia ser considerada um objeto de decoração.

ESCURIDÃO

O jantar foi servido à luz de velas, os pratos em cima da toalha de crochê misturados aos enfeites da mesa. A comida era um tanto pesada, mas o cansaço e a fome me impediram de questionar o conteúdo daquela noite.

O rapaz com a tatuagem de tubarão, contava uma piada, algo como adivinharmos quem era a sua esposa. O casal ao lado, programava como seria a próxima e última etapa do pedal turístico. Os outros estavam concentrados no bate-papo animado antes do recolher.

Resolvi levantar e buscar algo para beber na cozinha. Peguei uma das velas e entrei na porta mais próxima. Olhei em torno e busquei o que pudesse conter garrafas, não havia geladeira naquele cômodo.

Já estava com o copo cheio nas mãos quando ouvi um ruído, a iluminação não era grande coisa, então me apoiei no que pensei ser a pia e me virei. Vi, no canto esquerdo, entre a parede e o armário, uma figura franzina, sentada, silenciosa.

O susto foi tão grande que me pus a falar e a pedir desculpas, ah claro como tinha sido estúpida, ter entrado ali, sem pedir licença, pegar a bebida sem solicitar ajuda. Comecei dizendo "poxa, me desculpe, não sabia que você estava aqui, etc etc etc

Mas ela não respondeu... fui caminhando na direção da porta e no relance da chama, vi, não uma moça, mas uma senhora... negra e cega.

A CARTA

Na sala, a conversa continuava animada, misturando-se aos bibelôs da mesa de centro. A dona do espaço explicou que era fruto de coleta de diversas viagens pelo mundo... Egito, Paquistão, Japão e Jalapão.

O sono veio, mas resolvi esperar que alguém, cansado o suficiente, pudesse me acompanhar até o final do corredor.

Uma carta grudada no teto me chamou a atenção... Ahhhh, isso foi fruto de um mágico que passou por aqui! Ela começou a contar como naquela noite, há alguns anos atrás, um rapaz tinha ficado do lado de fora da janela, desafiando os internos sobre as cartas em sua manga. Uma delas, misteriosamente fora parar acima das nossas cabeças e desde então, ficara ali por aqueles anos todos.

O DIA SEGUINTE

As olheiras delataram a noite mal dormida. Os pesadelos povoaram por todos os quartos, alguns estavam culpando a comida. Não questionei.

O sol, responsável pela minha cegueira parcial do dia anterior, novamente estava forte e potente. O peso saiu das minhas costas quando chegamos na varanda. Pude ver como o jardim, naquela parte da casa era cuidado de forma diferente... havia cristais cuidadosamente postos de forma simétrica, um caminho estava demarcado, uma suculenta de tamanho avantajado compunha o cenário com bolinhas de isopor em cada ponta.

Fiquei feliz em colocar o capacete, vestir as sapatilhas e atravessar a porteira até a estrada.

Tinha reconhecido a mulher branca do quadro.


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